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QUANDO O LUTO

VIRA DEPRESSÃO

Em 1915 Freud escreveu um de seus mais famosos artigos: Luto e Melancolia. Costumamos retornar a esse texto sempre que tentamos compreender uma situação de perda. Na atual pandemia pela COVID-19, inevitavelmente seremos convidados a pensar, viver ou ajudar alguém nessa situação. No texto, as ideias lançadas pelo autor se aplicam aos mais diferentes tipos de perda e assim, se encaixam perfeitamente na situação atual. Todos nós de alguma forma, estamos perdendo. Alguns estão perdendo o abraço de um amigo, a saída na sexta a noite, a festa de aniversário, a formatura. Outros passam por perdas mais difíceis como o trabalho ou a sustentabilidade de sua empresa, infelizmente alguns de nós estão perdendo um ente querido, pais, avós, filhos, irmãos, conjugues ...

Vou chamar aqui de “trabalho do luto”, inspirado em Freud, um estado mental ou psíquico inaugurado pela situação vivenciada como perda. É importante elucidar que esse trabalho, entendido então como a transformação imposta a nós a partir dessa falta é um processo contínuo, na medida em que ele suscita em nós uma nova maneira de ser, ressignificando sensações e sentimentos antigos ou nos proporcionando novos sentimentos ainda não vividos. Nesse sentido, não acho que seja possível responder questões como: “ Qual a duração de um luto normal?” ; mesmo expressões como normal ou patológico me parecem mal aplicadas ao termo luto, uma vez que , um luto enquanto processo de elaboração da perda, é sempre um fenômeno normal. Cabe aqui então outras duas reflexões muito importantes: Uma sobre o termo “trabalho” e outra sobre o termo “depressão” que aparece no título. Este último, chamado “melancolia” por Freud, aponta então para um estado de sofrimento que merece maiores cuidados, e que, a meu ver, pode ser encontrado em situações específicas que independem em certo grau do fator tempo. Os dias e as horas são apenas o substrato ao longo do qual o trabalho do luto vai se dando...

Considero o termo -trabalho- muito adequado para o contínuo processo que se vive em um luto, ou na confluência de lutos que vamos enfrentando no dia-a-dia. No sentido em que, esse é um processo necessariamente trabalhoso. Quero enfatizar a ideia sobre um estado de estar disposto a viver esse trabalho, como uma condição a ser buscada para o desenrolar do processo. Poder se submeter a uma falta até que ela deixe de sê-lo apenas falta. Assim, ir elaborando a perda é sobretudo ir sentido a falta. Poder envolver -se em lembranças que se repetem até que a dor se transforme em saudade. Nesse processo, demandas por negar a dor vivida por um ser faltante, apesar de tentadoras, podem conduzir a um estado tão doloroso ou mais doloroso que a depressão. Poderíamos aqui, grosseiramente, nos aproximar do termo “defesa maníaca”, o que corresponderia a processos de substituição realizados com ares de triunfo ou gozo exacerbado e que no fundo, podem estar a serviço de um adiamento do chamado “ trabalho do luto”. O qual, certamente virá e , assim como nossos trabalhos cotidianos, esse trabalho, até ameniza-se , mas de fato, nunca acaba.

Retomemos ao termo “depressão”. Desde S. Freud, até hoje , reconhecemos na depressão uma característica principal , não presente , ou presente muito momentaneamente no luto. A saber: a diminuição da auto-estima. “ No luto o mundo se tornou pobre e vazio, na melancolia , foi o próprio ego(eu)”( p.150( 64)). Observe que nos dois processos, luto e depressão, há um esvaziamento de sentido. Haviam antes investimentos prazerosos dirigidos à pessoa ou á situação perdida. É o trabalho do luto que permite que esses investimentos , essa energia de viver vá aos poucos encontrando outras direções. Na melancolia, por um processo de

identificação narcísica com a pessoa ou a posição libidinal perdida, há uma perda de si mesmo! Desse modo, para o melancólico , tudo que se é , suas atitudes , seus valores e interesses, não valem a pena, para além de um esvaziamento , há uma auto recriminação total de si mesmo.

Quase todos os últimos dias, no trabalho, pessoas me perguntam se, nessa situação de pandemia, a população em geral estaria mais propensa ao desenvolvimento de estados depressivos. Me proponho a pensar então nas diferenças que estariam colocadas entre uma situação de perda em outros tempos não pandêmicos e agora, durante a pandemia. Um aspecto que me vem à mente, chama a atenção para a imprevisibilidade que evidencia o caráter intrusivo da situação de perda. O que acontece quando, um vírus vem do outro lado do mundo, “roubar” nossas preciosidades? Esse raciocínio se aplica então não apenas para a situação pandêmica, mas para situações em que a iminência de perda não é percebida. Ou seja, quando temos poucos , ou nenhum indício de que uma perda ocorreria e somos então “pegos de surpresa”. Seria um exemplo uma perda por acidente de carro ou uma doença de letalidade muito alta e tratamento curto. Temos então um impasse a ser respondido: Situações de imprevisibilidade da morte aumentariam a tendência de um luto virar depressão?

Há pouco, consideramos que existe um tempo do qual o trabalho do luto necessita para se estabelecer. Nesse sentido, podemos refletir sobre o fato de que o anúncio sobre a possibilidade de uma perda permite que o trabalho do luto se inaugure, antes da ocorrência da perda em si. Fazendo parte dessa elaboração inclusive a esperança de que a perda não aconteça. A dor inerente ao luto talvez seja sentida de maneira mais intensa por um tempo maior pelos enlutados de maneira abrupta. Entretanto, essa imprevisibilidade da perda, não é suficiente, de modo isolado para justificar uma maior probabilidade de evolução para uma depressão.

Cabe nesse ponto , acrescentar uma das características que a meu ver , é um ponto chave para que um luto se transforme ou não, em melancolia: o modo como lidamos com a finitude das coisas, nesse caso, com a finitude da vida. Talvez o processo de maturidade em si , muito tenha a ver com a aceitação dessa inevitabilidade. Por mais que a vida de certa forma, exija que mantenhamos a morte distante, ainda que no imaginário , e sem nenhuma segurança disso, ela também nos invoca a compreende-la como um processo de “morrência” demarcado por uma perda atrás da outra. Uma situação de ameaça de morte como a que vivemos agora com a pandemia imprime à condição humana sua eterna e mais penosa tarefa: manejar esse equilíbrio entre investir na vida e saber perde-la. São déficits nesse manejo que instaura um processo depressivo a partir de um luto. O quanto cada um consegue ou não fazer esse manejo , parece ter a ver muito mais com a história de vivências do enlutado do que com características da perda em si.

De qualquer forma , uma vez que o humano é por excelência um ser gregário , fica a lembrança de que o sentimento de união, empatia e responsabilização pelo cuidado da vida uns dos outros , são ferramentas essenciais na estruturação do manejo acima referido. Seja na luta pela preservação da vida, seja no processo de lidar com a morte, será preciso espalhar, um sentimento de comunhão e solidariedade, cujo contágio seja tão forte e poderoso como do COVI-19.

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